Crónica de Licínia Quitério | O Natal

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | O Natal

por Licínia Quitério

 

Inevitável fugir ao tema Natal que em tempos de cristandade inspirou quadros, esculturas, livros, cada um ao gosto do seu tempo, à medida do talento em exercício. Neste pedaço de mundo, apropriado pelo mais desenfreado consumismo, os adoradores de Jesus andrajoso e nu vestem-no de fazendas vermelhas, de peles brancas, e chamam-lhe Pai Natal, o tal lá da Lapónia gelada e não o crucificado que terá vindo do médio oriente escaldante.

A par da desfilada de renas e embrulhos, há o presépio, nem sempre em lugar de destaque, os mais novos querem lá saber de representações, oh oh oh. A estrela aparece encimando o presépio, no seu papel de guia de magos, sábios, videntes, crentes em anúncio divino. São reis de vários reinos, levam o ouro, o incenso, a mirra, como se o neófito, herdeiro de supinos bens, desses presentes houvesse necessidade. Os aldeões, pobres e cansados, pragmáticos, trazem ao Menino as coisas que lhe possam servir na sua condição de perseguido por poderosos: produtos das poucas terras que lhes era permitido cultivar, uma abóbora, uns ovos, um pote de mel. Por ali ficam em momentos de raro descanso olhando a criança que, esperam, há-de de ser homem e ser capaz de os salvar da escravidão. Ainda se guardam essas figurinhas em caixas, em armários, para de lá saírem e tomarem lugar na sala na época festiva. É bonito para manter a tradição, mais do que a devoção, até porque as coisas vão mudando, os adoradores e os adorados também. Os supermercados estão a abarrotar de cores e brilhos para que se compre, se compre, se ofereça a quem já nada falta, para depois deitar no lixo, nas montanhas de lixo, a agravarem a doença do planeta, a doença dos homens.

Lá no oriente, onde há milénios Jesus e tantos outros foram crucificados, o martírio continua, em nome de deuses vários, afinal todos parentes da solidão dos homens. Impensáveis chacinas por ali acontecem, há anos, há séculos, por mor de terras que acreditam terem-lhes sido prometidas. Nesse oriente do meio, não se fala de nascimento divino, mas de matança de inocentes, tal como lá atrás no princípio da história. Por aqui, temerosos do alastrar da tempestade, em nossas casas vamos pendurando bolas coloridas nos braços de pinheiros, os miúdos esperando o Pai Natal que trará presentes, e os mais velhos, muito velhos, falando de outros natais em que tudo era bonito, naturalmente, antes das doenças, dos lutos, de o corredor da idade tudo ir baralhando.

O solstício não falta, a escuridão irá dar lugar à Luz, as sementes dormentes sob a terra aguardam o dia de saírem para o Sol e serem verde, árvore, flor. É o milagre do Natal.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | O Natal”

  1. Maria Clara Pimentel

    Nostálgico mas também certeiramente crítico dos natais de hoje e do que passa nas terras onde dizem ter sido natal mas onde actualmente o vão matando.
    A voz magíficas, como sempre, de Licínia Quitério

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